O Homem Que Queria Ser Rei (1975)

Escrita por Filipe Manuel Neto em 20 junho 2023

Um magnífico filme de aventuras que adapta ao cinema um conto de Rudyard Kipling sobre a ganância e sobre o preço que se pode pagar por ela.

Nascido na Índia Britânica, Rudyard Kipling é um dos escritores britânicos de maiores méritos do fim do século XIX, e talvez dos mais prolíficos. Ver uma lista completa da sua obra escrita é um exercício de paciência e se pensarmos que escreveu todas as suas obras à luz do Sol ou do gás e usando a caneta de mergulho, sem computadores e sem a luz eléctrica para ver melhor, é verdadeiramente notável que tenha escrito tanto.

Oriundo de uma família de sangue aristocrático, muito ligada à vida colonial, teve uma educação conservadora e a sua juventude está indelevelmente ligada à Índia, que sempre retractava como algo idílico. Ainda na Índia, teve uma ama portuguesa e católica, com quem rezava. Já na vida adulta, viajou, conheceu muito os Estados Unidos e o Oriente. Porém, Kipling era um homem do seu tempo, e esse tempo foi o auge da dominação dos britânicos na Índia, o tempo do Império Britânico. E ele, de acordo com a educação e os valores que recebeu, sempre acreditou no valor civilizador da missão colonial dos povos europeus – e particularmente do Reino Unido, a sua pátria, que sempre defendeu sem se importar com as consequências do imperialismo e do uso da força (foi, por exemplo, um defensor das campanhas contra os Bóeres). Um profundo jingoísta, pagou por isso anos depois: na Primeira Guerra Mundial, perdeu um filho em combate e foi particularmente activo na colaboração com a Cruz Vermelha e no consolo dos feridos. E curiosamente, foi talvez dos primeiros a compreender o perigo que vinha com a ascensão do fascismo italiano e de Hitler na Alemanha.

Este filme, inspirado num dos contos mais controversos do autor, fala-nos da ambição e ganância de dois soldados britânicos que resolvem aproveitar-se da ingenuidade de uma população isolada numa área inóspita do Paquistão. Eles resolvem ir até lá, sabendo que havia muitas guerras tribais, e tornar-se reis daquela gente. Com livre acesso às riquezas a que pudessem deitar mão, esperavam depois voltar ricos para Inglaterra. Este conto é uma crítica à ambição desmedida de certos ingleses e à forma injusta como a população local foi espoliada dos seus valores. Estou certo que, por muito imperialista que Kipling fosse, conhecia e condenava tais excessos. E o filme é bastante fiel ao conto.

John Huston fez um excelente trabalho neste filme, que sobressai entre a sua filmografia como um dos melhores trabalhos do director. Além de conseguir dar-nos o aroma épico, belo e temível da região onde tudo se passa, ele consegue extrair o melhor de um elenco muito forte, liderado por três actores titânicos: Michael Caine, Christopher Plummer e Sean Connery. Se nós temos elevada consideração pelo talento e percurso de cada um, é verdadeiramente imperdível vê-los juntos. Mesmo sendo dois aventureiros gananciosos, o trabalho de Caine e Connery consegue fazer-nos gostar das personagens deles, muito particularmente de Connery, cuja personagem faz um extraordinário arco dramático: ele começa mesmo a preocupar-se com aquela gente.

O filme tem uma excelente cinematografia, com cores fortes e bastante luz, mas o que é verdadeiramente notável é a escolha dos locais de filmagem, centrados em Marrocos. A beleza agreste das montanhas é magnética, e a sensação omnipresente de perigo, mesmo nas situações mais pacíficas, prende-nos à tela. Maurice Jarre assina a banda sonora, que pode muito bem estar entre as melhores do compositor.