O Pianista (2002)

Written by Filipe Manuel Neto on February 13, 2022

Uma obra-prima.

Há alguns filmes que são tão poderosos e marcantes que ficam na memória colectiva. Este é um deles… não por ser um filme sobre o holocausto judeu, porque há imensos filmes acerca desse tema, mas pela forma crua como o abordou, sem artifícios ou heroísmos. Dirigido com absoluta mestria por Roman Polanski — ele mesmo um sobrevivente do holocausto, com muitas memórias duras da época, algumas delas aproveitadas aqui — o filme procura espelhar o relato pessoal das dificuldades vividas por Wladyslaw Szpilman, um pianista judeu que trabalhava na rádio quando a Polónia é invadida pela Alemanha Nazi.

Não li o relato original escrito por Szpilman, que morreria numa fase em que o filme estava já a ser feito, mas dou crédito aos esforços de Polanski. O director quis um relato fiel, realista e sincero, e conseguiu tornar o seu filme num retracto historicamente fiel e credível dos factos e acontecimentos vividos em Varsóvia durante a invasão alemã, incluindo a ocupação da cidade, a mudança forçada dos judeus para o gueto e o transporte para os campos de extermínio, as duras condições de vida sentidas por quem vivia no gueto e a forma como a resistência polaca e os judeus confinados colaboraram para se oporem aos invasores, num trabalho que teve o seu auge com a Revolta do Gueto de Varsóvia, suprimida com extrema violência, como sabemos. A história do pianista vai decorrendo entre todos estes factos, tornando Szpilman na testemunha ocular de tudo isto. Em meio à absoluta barbárie, notas dissonantes que nos ajudam a não ver a realidade a preto-e-branco: uma polícia judaica que colabora com os nazis oprimindo os seus irmãos de etnia, uma dona de casa polaca que não hesita em denunciar aquele judeu horrível que se esconde no apartamento do lado, e um oficial alemão que, contra todas as expectativas, se predispõe a ajudá-lo como pode, chegando a dar-lhe o seu casaco militar para não passar frio. A guerra e a vida têm destas coisas.

Adrien Brody, ainda jovem, conseguiu com este filme a interpretação mais marcante e poderosa da sua carreira até ao presente. Ele é um excelente actor, terá imensas oportunidades para fazer algo tão bom, ou melhor, mas tenho de reconhecer que vai ser difícil dar-nos algo tão poderoso e intenso. Ao seu lado temos boas interpretações de Frank Finlay, Emilia Fox, Michal Zebrowski e Thomas Kretschmann, entre outros actores, todos eles dois ou três degraus abaixo de Brody.

Tecnicamente, o filme explora ao máximo os locais de filmagem escolhidos em Varsóvia, onde as filmagens se concentraram. Os cenários e figurinos estão carregados de detalhes e realismo, transportando-nos para a época e contexto histórico com um rigor verdadeiramente invejável, digno de um documentário. A este trabalho, temos de associar uma cinematografia impecável e magnificamente pensada, onde a luz e a cor desaparecem gradualmente, à medida que toda a acção avança e as atrocidades vão sendo cada vez mais evidentes. Há ainda alguns efeitos de CGI muito bem executados, e que nos levam por uma cidade arrasada por bombardeamentos e combates. A tensão e a dureza dos acontecimentos mantêm-nos presos ao filme até ao fim, e a brutalidade e a destruição da guerra são a cereja em cima do bolo. A banda sonora reúne uma série de magníficas melodias de Chopin, compositor que sabia explorar a harmonia e nostalgia do piano como quase ninguém o soube fazer depois dele. Ironicamente ou não, este compositor polaco era anti-semita (como muitas pessoas na sua época), o que não impediu que pianistas de sangue judeu como Arthur Rubinstein se debruçassem longamente sobre as suas partituras…