As Paixões de Júlia (2004)

Escrita por Filipe Manuel Neto em 24 julho 2021

Uma excelente comédia leve recheada de grandes estrelas, e com Annette Bening ao seu melhor nível.

O que você faria se descobrisse que está a ser traído não apenas pelo seu companheiro, mas também pelo seu amante, e o que é mais estranho, com a mesma pessoa? Não me vejo nesta situação, mas é decididamente algo pelo que não quero ter de passar. Eu vingar-me-ia? Nunca se sabe. Julia decidiu vingar-se. Era a actriz mais renomeada e conceituada dos palcos ingleses, mas fora da ribalta ela revela-se muito mais passional nas suas atitudes e inconstante no amor: vivendo num casamento de circunstância com Michael Gosselyn, que ainda é seu empresário, e conformada com o facto de ambos viverem vidas relativamente separadas, a actriz encontra conforto nos braços de sucessivos amantes até encontrar um americano, Tom, que a engana e a trai com uma actriz muito mais jovem. Não me vou alongar mais na descrição do roteiro, até penso que já falei demasiado. Veja o filme. Vale a pena.

De facto, o filme é bastante bom, ainda que, a fazer fé nas opiniões de quem leu o livro onde é baseado, tenha feito um aproveitamento muito infeliz do material original. Não é caso único, e não será a última vez que uma adaptação de uma obra literária não agrada aos fãs do livro. No entanto, o filme é bom, tem um bom ritmo e uma história elegante, sem cair em exageros, em desvarios histriónicos ou excessos de doçura e sentimentalismo. Na verdade, o filme funciona, quase, como uma comédia leve, e há muito material para algumas gargalhadas ao longo deste filme, absolutamente delicioso.

O elenco está carregado de estrelas fortes, e é extraordinário vê-las todas aqui, no seu melhor. É Annette Bening, no papel da protagonista, quem merece maior destaque e quem realmente rouba as nossas atenções. Até ao momento, este é o grande filme da carreira desta actriz. Ela já dera provas de talento antes, em filmes como Beleza Americana ou Anatomia do Golpe, pelos quais chegou a ser indicada ao Óscar, sem vencer (também recebeu a mesma indicação com este filme, vendo de novo a estatueta passar-lhe diante dos olhos). Aqui, ela empenha-se intensamente e consegue uma hecatombe de emoções, dando a Julia uma personalidade que nos deixa espantados. Também Jeremy Irons merece um aplauso pela forma como deu vida a Michael Gosselyn. Adorei a maneira como ele e Bening contracenaram, estabelecendo laços de empatia que excluem o amor, mas os tornam parceiros, de certo modo. Michael Gambon deu vida a uma personagem que, de certo modo, funciona como o mentor de Julia, e foi feliz nessa tarefa. Lucy Punch é extraordinária e parece estar a divertir-se imenso com as peculiaridades da sua personagem, assim como Juliet Stevenson e Miriam Margoyles. Pessoalmente, confesso que não gostei muito de Shaun Evans. Parece um indivíduo mimado, ambicioso, enganador e o actor não é capaz de lhe dar mais do que uma pálida ideia da sua personalidade dúbia.

Tecnicamente, é um filme que sabe aproveitar os recursos disponíveis com a inteligência de se manter fiel à história que quer contar-nos, e ao trabalho colossal do elenco que tem. Além dos cenários maravilhosos, provavelmente o resultado de uma criteriosa escolha dos locais de filmagem (em Inglaterra e na Hungria), o filme conta com excelentes adereços de época e uma magnífica colecção de figurinos. Tudo conjugado, e temos o ambiente certo para um filme que se quer situado no período entre as duas guerras mundiais. A cinematografia discreta sabe aproveitar a beleza visual e intensificá-la, com um uso inteligente das cores, da luz, da sombra e do enquadramento de filmagem. Não há aqui efeitos ou CGI, é a própria natureza do filme que os dispensa. A banda sonora, discreta, mas elegante, foi composta por Michael Danna e encaixa-se perfeitamente no ambiente animado e simpático do filme.